quinta-feira, 19 de abril de 2012

Esquizo-análise

A esquizo-análise é uma análise, sempre parcial e provisória, do processo de produção do mundo, através dos arranjamentos que incidem num certo contexto.
     “Que é um arranjamento? É uma multiplicidade que comporta muito de termos heterogêneos e que estabelece ligações, relações entre eles, através das idades, dos sexos, dos reinos — das naturezas diferentes. Por isto, a única unidade do arranjamento é de co-funcionamento: é uma simbiose, uma ‘simpatia’. O importante jamais são filiações, mas as alianças e as ligas; não são as hereditariedades, as descendências, mas os contágios, as epidemias, o vento” (Deleuze e Parnet, 1996, p. 84).
       "A esquizo-análise será, pois, essencialmente excentrada em relações às práticas ‘psi’ profissionalizadas, com suas corporações, sociedades, escolas, iniciações didáticas, ‘passe’, etc. (...) Não somente não haverá protocolo esquizo-analítico normalizado, mas uma regra fundamental, uma regra antiregra imporá uma constante recolocação em questão dos Arranjamentos analisadores em função de seus efeitos de retroalimentação {feed-back} sobre os dados analíticos” (Guattari, 1989, p. 28 e 30).
       A esquizo-análise se colocará questões e tarefas.
      “Como um Arranjamento assegura a continuação de uma outro Arranjamento para ‘gerir’ uma situação dada? Como um Arranjamento analítico, ou pretendido tal, pode mascarar um outro? Como vários Arranjamentos entram em relação e o que advém daí? Com explorar, num contexto em aparência totalmente bloqueado, as potencialidades de constituição de novos Arranjamentos? Como ‘assistir’, se o caso se apresenta, as relações de produção, de proliferação e a micropolítica destes novos Arranjamentos?” (Guattari, op. cit., p. 30). Como isto marcha?
       “A esquizo-análise renuncia a toda interpretação, porque ela renuncia deliberadamente a descobrir um material inconsciente: o inconsciente nada quer dizer. Em revanche, o inconsciente faz máquinas, que são as do desejo e das quais a esquizo-análise descobre o uso e o funcionamento na imanência às máquinas sociais. O inconsciente nada diz, ele maquina. Ele não é expressivo ou representativo, mas [ é ] produtivo” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 213).
        “Assim, a caminhada esquizo-analítica jamais se limitará a uma interpretação de ‘dados’; ela terá interesse, muito mais fundamentalmente, no ‘Dando’, nos Arranjamentos que promovem a concatenação dos afetos de sentido e dos efeitos pragmáticos” (Guattari, 1989, p. 30).
        Cabe à esquizo-análise “descobrir sob o abatimento familiar a natureza dos investimentos sociais do inconsciente” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 323) e substituir o teatro da representação pela usina da produção desejante, desembaraçando-se do familialismo. E, principalmente, acolher o “cumprimento {realização} do processo {processus} da produção desejante, este processo que se encontra sempre já cumprido enquanto procede e tanto quanto procede”. “Cumprir o processo, não pará-lo, não fazê-lo girar no vazio, não lhe dar uma finalidade” é engendrar uma nova terra por desterritorialização. “Jamais se irá demasiado longe na desterritorialização, na descodificação dos fluxos”.
          Esta tarefa criativa da esquizo-análise exige ousadia e sensibilidade à diferença: “desfamiliarizar, desedipianizar, descastrar, desfalicizar, desfazer teatro, sonho e fantasma, descodificar, desterritorializar — uma pavorosa curetagem, uma atividade malévola” (Deleuze e Guattari, op. cit., p. 458).
         A esquizo-análise, pela cartografia, faz uma agrimensura dos acontecimentos, analisando-os no embate dos conceitos de maioria e de minoria. A maioria se erige como um padrão “em relação ao qual as outras quantidades, quaisquer que sejam, serão ditas menores” (Deleuze e Bene, 1990, p. 124). O território do estalão majoritário é animado por um modelo de poder no qual “de um pensamento se faz uma doutrina, de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz a História” (Deleuze e Bene, op. cit., p. 97). Estabelecem-se relações de força que tanto mais estandartizam regras e modos quanto mais se faz sentir a fragilidade (ou mesmo a impotência) de um estado de coisas, de uma situação, de um discurso em se franquear ao debate e à contraposição. Compõe uma minoria o conjunto de elementos que, independentemente da quantidade, está excluído do padrão majoritário ou está, subsdiariamente, incluído nele. Há sempre riscos de uma minoria recair na maioria, ao refazer o padrão de poder, ao normalizar-se, ao fechar-se sobre si, ao guetificar-se, ao molarizar-se.
         Fazer psicologia social, via esquizo-análise, é tornar-se minoria: é interceptar o processo de vida da comunidade para subtrair as homogeneizações e superar as estratificações do organismo, da significância e da subjetivação. O organismo, espaço-tempo marcado de arquitetura e ordem, se encarrega da objetividade, da eficiência, da acumulação, da hierarquia, da utilidade, para impedir corrupções. A significância faz passar apenas códigos interpretáveis, cerceando a criação e a livre circulação de signos, para impedir transgressões. A subjetivação recorta e fixa papéis distintos e complementares, para impedir errâncias. É preciso, então, aproveitar a variabilidade, a corrupção, a transversalidade, a transgressão, a heterogeneidade, a errância do mundo para impulsionar o próprio movimento de desterrritorialização da cultura.

Nenhum comentário: