quarta-feira, 21 de março de 2012

Machado de Assis precursor da Antipsiquiatria

A análise que nos propomos fazer de "O Alienista" de Ma­chado de Assis é urna tentativa de compreensão da vida do autor e do Rio de Janeiro na época em que foi escrito; em uma perspectiva crítica procuramos entender os motivos pelos quais levaram o autor ao interesse pela doença mental.


Julgamos que esse conto é uma grande obra de antipsiquiatria brasileira. Através da literatura podemos tecer as relações entre a ar­te, a psicopatologia e um dado momento histórico. Sabemos que as chamadas "doenças mentais" são tão an­tigas quanto o homem. Os primeiros documentos existentes falam da sua origem atribuída à relação precária entre o ho­mem e as divindades. A doença seria o castigo para faltas mo­rais ou o resultado da penetração de um espírito maligno no organismo humano.
Nos povos antigos não havia a separação entre o sofrimento mental e o físico, entre medicina, magia e religião. As práticas do xamã, do pajé, do feiticeiro seriam an­cestrais de vários modelos terapêuticos. Na Idade Média, pra­ticou-se o exorcismo e os "possessos" (os heréticos, os políti­cos, os doentes mentais e, sobretudo, as mulheres) foram muitas vezes queimados como bruxos. Havia nas cidades medievais uma delimitação nítida dos espaços. Fora dos seus muros, os lou­cos, os leprosos. Dentro, os razoáveis, os civilizados.
Para avi­sar sua aproximação os leprosos usavam um sininho. Os doi­dos possuíam, também eles, uma roupa diferente; era a semio­logia da loucura. Na França Medieval existia o costume de ce­lebrar, no dia vinte e oito de dezembro, a Festa dos Loucos. Essa missa profana, da qual participavam os padres, as crian­ças e os loucos, acontecia logo após o Natal. Era necessário "arejar os tonéis de vinho para que não explodissem..." (A pa­lavra folie, loucura em francês, tem o mesmo radical de fole, em português - aquilo que sopra o ar, "esvaziando a cabeça" de toda a alienação).
Havia nessas festas, nessas folias que se assemelhavam às saturnais romanas, uma tentativa da Igreja no sentido de ocupar um espaço que fora pagão. Espaço físi­co - pois os templos anteriores teriam sido destruídos para que sobre eles se construíssem as igrejas cristãs - e espaço simbólico. A festa era um rito de transição. Depois de um ano, através dessa celebração às avessas na qual era grande a im­portância das crianças, dos pequenos, dos parvos, dos bobos, fortificava-se a autoridade desgastada da Igreja. Essa carnava­lização durava uma semana. Através de um psicodrama inin­terrupto, a sociedade dramatizava os seus conflitos.
Não somente na literatura, mas também na vida real, exis­tiram as Naus dos Insensatos que, errando de porto em porto, transportavam a sua carga insana.
Na Renascença, a psicopatologia começou a separar-se do demonismo.
Os loucos passaram a ser recolhidos nos sanatórios, junta­mente com toda a população marginalizada: os mendigos, as prostitutas, os criminosos. Dessacralizou-se a loucura, que pas­sou do terreno religioso para o ético. O louco tornou-se um "ca­so de polícia", pois perturbava o espaço social.
Entre 1793 e 1838 Pinel fez a grande reforma psiquiátrica na França. Junto com Esquirol e outros seguidores criou o que hoje se denomina a Escola dos Grandes Alienistas Franceses. Essa reforma aconteceu paralelamente à revolução que eclodiu com a tomada da Bastilha em 1789, e que se esten­deu até 1795. A Revolução Francesa marcou uma longa luta pela emancipação política, social e econômica das massas po­pulares européias.
No IV Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1981, em Bar­bacena, o Dr. Joel Birman proferiu uma conferência intitula­da "A identidade do psiquiatra" na qual aponta mudanças que ocorreriam, do século XVIII para o XIX, no conceito de loucu­ra e, conseqüentemente, na identidade do psiquiatra. Se a lou­cura era vista de início, como alienação mental, insensatez, associada ao pecado, devendo ser, portanto, exorcizada, ga­nhou ao longo dos tempos o estatuto social de enfermidade, doença mental que deveria ser tratada. Criou-se a psiquiatria, parte da medicina que cuidaria dos males psíquicos. Delimi­taram-se os espaços para alocar os doentes, definiram-se as tec­nologias de intervenção. Os loucos encerrados nos asilos, ex­cluídos do convívio social, tinham os seus carcereiros - os psiquiatras.
A partir da ação libertadora de Pinel, do momento em que a doença mental passou a ser vista como algo a ser cuidado, e não, punido, o psiquiatra ascendeu à condição de terapeu­ta.
Mais tarde, segundo a teoria da medicina preventiva, sur­giu a idéia de que todos seríamos passíveis de sofrer uma cri­se vital e uma conseqüente intervenção psiquiátrica. O foco da atenção dos especialistas estaria dirigido não mais para a doença, e sim, para a saúde mental. O Dr. Birman fala de "imperialismo psicológico" com o seu "batalhão" de psicope­dagogos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, psicote­rapeutas das mais diversas linhas, batalhão que existiria para evitar futuras doenças mentais.
O psiquiatra, que fora carcereiro e depois terapeuta, pas­saria a ser um médico "preventivista". Essa intervenção per­manente seria como o confinamento, em um asilo, de toda a so­ciedade.
Vale a pena questionar em que medida esse "exército" do qual nos fala o Dr. Birman não estaria ameaçando destronar os antigos donos do saber - os médicos. E até que ponto esse novo exército não correria o risco de, alcançando o poder, sentir-se onipotente, em uma sociedade como a nossa que pri­vilegia tanto os aspectos psicológicos.
Outro fato que merece ser discutido é o da necessidade des­ses vários especialistas os quais se dedicariam ao doente co­mo um todo, uma pessoa pertencente a um grupo social, com um passado, uma família, uma história, e não, simplesmen­te, como um conjunto de sintomas.
Voltando às transformações do conceito de loucura perce­bemos que a doença mental teria sido aparentemente desmis­tificada. Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, nos fala desse espaço social esquadrinhado nos mínimos detalhes por um saber e uma tecnologia psiquiátricos. Nas sociedades discipli­nares, que exercem o poder da norma, para haver controle é preciso que haja vigilância. Daí a necessidade do exame mé­dico, do exame escolar. O saber, que é parte do poder, regis­tra comportamentos, cataloga, hierarquiza, marca desvios, ap­tidões, classifica. Seria então o hospital um aparelho de exa­minar? E os doentes, objetos de descrição, "casos médicos"? Curar seria voltar à norma?
Surgida na década de sessenta, na Grã-Bretanha, como con­testação aos modelos psiquiátricos existentes, a antipsiquia­tria, com Laing, Cooper e Esterson, tem como básicos três te­mas:

- a negação do modelo da doença mental. (A loucura se­ria somente a expressão de uma sensibilidade mais exaltada, de uma percepção mais profunda);

- o asilo é considerado uma instituição insana (A nova pro­posta seria a de banir a internação compulsória. O doente te­ria livre ingresso em casas onde seria acolhido, sendo-lhe per­mitido expressar-se livremente);

- o psiquiatra e seu discurso tentariam impor o privilégio da classe médica para reconduzir os "desviados".

Segundo afirma Basaglia, médico e professor italiano, os manicômios têm sido como prisões onde o internado entra pa­ra expiar uma culpa sem conhecer as causas e sentença.
O psiquiatra representa concretamente a ciência, a moral e os valores do grupo social do qual é o legítimo representan­te dentro da instituição. Desde a época da Barca dos loucos (Stultifera navis), que errava com sua carga de anormais e indesejáveis, a ciên­cia e a civilização parecem não ter sido capazes de oferecer nada mais que uma ancoragem nas ilhas da marginalização e da reclusão. Para o homem descarrilado moralmente, a pri­são. Para o homem com o espírito doente, o manicômio. Para o criminoso reconhecido doente, o manicômio criminal. Es­sas têm sido as conquistas da ciência até agora.
Joel Birman vai mais longe quando afirma que o tipo de intervenção depende da classe social do indivíduo: ao lado da "geografia enclausurada da loucura", que são os hospícios, exis­te uma elite que se psicanaliza. O problema não seria técni­co, mas sim, político. Para uma sociedade capitalista como a nossa não interessa investir em uma parcela não produtiva de população.
Aqui no Brasil as transformações têm se dado de forma mui­to superficial, e a identidade do psiquiatra-carcereiro, em mui­tas circunstâncias, ainda permanece.
Quando uma rede de televisão faz uma reportagem sensa­cionalista, a opinião pública se escandaliza, mas, depois se "es­quece". Se abrimos os jornais, encontramos notícias como essas:

"(...) e embora ainda muito ruins, as coisas começaram a me­lhorar por lá (hospício em Vargem Alegre)... Os 800 doentes mentais internados já usam roupas e dormem em camas; os mais velhos e doentes não precisam mais disputar um prato de comida no refeitório cercado de valas... As janelas das en­fermarias são de grades por fora e basculantes de vidro por den­tro, que foram praticamente todas quebradas pelos próprios doentes. Algumas das enfermarias ficam no primeiro andar e o refeitório, a cozinha e a caldeira, no segundo. São lugares onde o chão fica constantemente molhado e isso provoca umi­dade e vazamentos nas enfermarias inferiores. As paredes têm limo, pinga água do teto, que às vezes inunda todo o pavilhão. Vargem Alegre é um lugar muito frio (...)."
Outro exemplo do abandono em que vivem e o aniquila­mento que sofrem os doentes mentais das classes menos fa­vorecidas no nosso país, foi retratado no artigo do Jornal do Brasil, do dia 14 de maio de 1984, sobre Juqueri, em Franco da Rocha-SP:

"Em um setor de mulheres, as pacientes andam nuas e su­jas no pátio, onde pousam urubus."

"Nelsinho chegou ao Juqueri quando tinha seis anos. Aos 10, por morder os funcionários, foi punido: passou 12 anos trancado em uma cela forte (solitária). Há um ano, com a desati­vação das celas fortes, ele teve de ser retirado à força da cela e não se conformou - ele mesmo se amarra em sua cama (...)"

''Com pacientes internados em média há 15 anos, alguns há 40, o Juqueri ainda é considerado o 'fim da linha' para o doente mental".

Ao vermos o filme de Hugo Denizart sobre o Pavilhão Fe­minino da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, sentimos o peso esmagador da violência institucional que despersona­liza o doente. É emocionante perceber como aquelas mulhe­res, sob a neutralidade dos uniformes, ainda se esforçam em ser elas mesmas, tentando conservar uma identidade própria. Daí a preocupação do cineasta, com os adornos, os adereços, a flor usada como brinco, as bijuterias, as cores, o banho e o talco, a boneca velha transformada em filha, a preservação dos laços afetivos entre as internas.

Chegamos a Machado de Assis.

Ele nasceu em 1839 em um período de agitações, de tran­sição política. Apesar da Independência ter sido proclamada em 1822, a vida aqui ainda era como nos tempos da Colônia: não tínhamos independência de costumes nem autonomia in­telectual. A literatura não refletia o nosso ambiente - o úni­co veículo para isso seria o jornal, limitado, empolado, retra­tando o clima de politicagem. Tudo vinha da Europa: a moda, a cultura, o teatro lírico e suas prima-donas importadas da França e da Itália. O Rio era uma pequena cidade suja e desconfor­tável. Com suas ruas estreitas, seus lampiões a gás, seus pe­quenos sobrados e, nas proximidades, entre as casinhas hu­mildes, as chácaras dos senhores do Império.
Foi em uma dessas imponentes quintas, no morro do Livra­mento, que nasceu o afilhado da Sra. Bento Barroso Pereira - o menino Joaquim Maria Machado de Assis. Filho de pais pobres - o pai mulato era pintor e dourador; a mãe era por­tuguesa. Foi o primeiro filho do casal e viveu sob a proteção dessa família rica. Sua infância transcorreu entre o sobrado e a casa humilde dos pais. Desse contraste nasceu a inclina­ção pela fidalguia e o desprezo à vida pobre. Esse conflito trans­parece na sua obra, sendo quase uma obsessão a tentativa de esconder a sua origem humilde. Depois de Joaquim Maria nasceu-lhe uma irmã, que morreu prematuramente. Sua mãe também veio a falecer quando ele tinha 10 anos. O escritor não foi uma criança sadia. Houve dois marcos na vida do autor: a morte da mãe e a sua epilepsia. Através de seus escritos obser­va-se que ele adorava essa mãe e muito freqüentemente, se fantasiava como filho de outro pai; este, por sua vez, ao enviuvar, ca­sou-se de novo com uma mulher de sua cor, doceira de um colégio. O menino Joaquim estudou de forma esporádica. Aprendeu francês com um forneiro da padaria de Mme. Gal­lot. Assistia de longe e silencioso às aulas no colégio onde tra­balhava sua madrasta. Mergulhava nos livros da biblioteca des­sa mesma escola. Sempre foi um menino só. Segundo Gon­dim da Fonseca, cuidadoso biógrafo do autor, existiria em Ma­chado de Assis um ódio inconsciente contra esse pai escuro e um desejo de substituí-Io no amor à mãe - o que teria con­tribuído para agravar o seu humor neurastênico, a sua angús­tia, o seu desejo de isolar-se do mundo. Esse amor pela mãe e o fato de haver introjetado o pai como fera transparecem nos seus livros. Diversos personagens enfreiam a língua, receosos de dizer o que na verdade desejam. (Seria essa retenção a ori­gem da sua gagueira na vida real?) O autor era retraído e tími­do, porém o seu comportamento literário foi extremamente arrojado e inovador. Aos 16 anos entrou para a Imprensa Na­cional como aprendiz de tipógrafo. Trabalhando sempre com as letras passou a escrever para as revistas da época. Aos 30 anos casou-se com Carolina Novais, portuguesa como sua mãe e cinco anos mais velha do que ele. Machado, nessa época, já era uma figura de peso na literatura nacional, um jornalista acatado. Não foi, no entanto, bem aceito pela família da mo­ça. Depois do casamento os ataques epiléticos aumentaram acrescidos de outros sintomas psicossomáticos. A doença fez com que a esposa redobrasse os seus cuidados, com desvelos quase maternais.
Sua vida transcorreu metódica: leitura, trabalho intelectual e burocrático (ele era funcionário público). Sempre atormen­tado por problemas de saúde e pelos recalques por motivo de sua raça e origem teve na literatura o seu grande desabafo.
Leme Lopes, em seu livro sobre Machado de Assis, enfati­za que "as manifestações anormais e mórbidas do espírito têm dado origem a grandes criações na tragédia, no romance, na poesia, e mesmo na pintura... Os personagens são então en­carados como representativos de aspectos da personalidade de seu criador... Há assim uma possibilidade de colher, nas grandes obras artísticas, subsídios à compreensão do adoecer psíquico. Em Dostoiévski há mais dados sobre as personali­dades epiléticas que nas monografias feitas com questionários, testes e corretas correlações estatísticas... Há, na obra de Ma­chado de Assis, sonhos e delírios, doenças mentais e perso­nalidades anormais, toda a gama da variação humana, tal co­mo a estudou nesta nossa cidade, na segunda metade no sé­culo passado, o seu maior escritor." (Lopes, 1981). Ainda segundo Leme Lopes "O Alienista" nos faz pensar que o autor tinha um profundo conhecimento das obras dos gran­des alienistas da época, principalmente os franceses. É de se admirar, contudo, que em sua biblioteca não se tenha encon­trado nenhum livro de medicina.
Uma das propostas deste artigo seria entender o mo­tivo do interesse de Machado pela loucura. A epilepsia, que voltou a se manifestar após o seu casamento, aliada às crises psíquicas mencionadas em notas de seu diário, seriam a pos­sível causa dessa preocupação do autor com a alienação men­tal. Machado era de origem humilde, mulato, gago e epiléti­co.
"O Alienista", história escrita em 1882 e inserida no livro Papéis Avulsos, nos fala da vila de Itaguaí e de um determina­do médico, o Dr. Simão Bacamarte, que resolveu, em nome da ciência, ocupar-se da "saúde da alma".
Desde a escolha do nome do protagonista percebemos a ironia do autor. Simão é o nome que se dá aos macacos; do grego Simon, o que tem o nariz chato, originou-se simius, sí­mio. Bacamarte é uma arma de fogo, antiga forma de fuzil. Quem seria, portanto, esse doutor? Quem estaria ele maca­queando? O que estaria caçando, a loucura?
Pois bem. Esse Dr. Bacamarte, que estudara em Coimbra e em Pádua, ao regressar ao Brasil resolveu "agasalhar e tra­tar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades (...)".
Casara-se aos quarenta anos com Dona Evarista, uma viú­va de 25: "(...) não bonita nem simpática (...), mas que "(...) reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, dige­rida com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robus­tos, sãos e inteligentes (...)".
Esses filhos, porém, não vieram. E o Dr. Bacamarte refu­giou-se na ciência, tal qual Machado de Assis, que também não tendo descendentes, realizou-se na literatura.
Como em Itaguaí ninguém fazia caso dos dementes, "as­sim é que cada louco furioso era trancado em alcova, na pró­pria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vi­nha defraudar do benefício da vida", o médico criou o primei­ro asilo, a primeira Casa de Orates, e deu-lhe o nome de Casa Verde. Não sem despertar a desconfiança de muitos, princi­palmente do padre Lopes, que insinuou a Dona Evarista que o seu marido não estava bem: "Isso de estudar sempre, não é bom, vira o juízo."
O doutor (douto ou doudo?) recolheu doentes de todas as partes, furiosos ou não. Pouco a pouco foi catalogando, hie­rarquizando. (O que Leme Lopes chama de "furor cIassifica­tório" típico da medicina mental da época.) Registrou a "ma­nia das pedras", a "mania das grandezas". Não tardou muito, Bacamarte viu um louco em cada pessoa que dele se aproxi­mava, e concluiu: "A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspei­tar que é um continente". (Essa idéia se assemelharia à de Joel Birman quando este último observa que existiria nos dias de hoje como que um Asilo Geral que abrigaria toda a socieda­de.)
Começou a causar apreensão, na cidade, a generalização dos diagnósticos. Até os vereadores foram considerados doen­tes. D. Evarista, esposa do médico, viu-se recolhida à Casa Ver­de, por sofrer da mania do luxo. A insatisfação popular cres­ceu, assim como as acusações à Casa Verde, que foi apelidada de "Bastilha da razão humana", "cárcere privado". Houve uma rebelião, liderada por um barbeiro. E mais outra.
Simão, no entanto, "frio como um diagnóstico", dono do sa­ber e do poder, suplantou todas as dificuldades. Continuou os seus estudos até que, subitamente, mudou a sua teoria. Deu liberdade aos loucos e recolheu ao asilo os homens de bem, alegando que estes seriam os verdadeiros doentes mentais.
Finalmente percebeu que essa não era a teoria acertada e concluiu que possuía, ele mesmo, todas as características do "acabado mentecapto".
Esvazia, então, a Casa Verde, e instala-se aí como o seu único inquilino.
Assim como Freud, que iniciou o processo de auto-análise em 1883, Simão Bacamarte descobriu uma nova doutrina onde ele seria, ao mesmo tempo, a teoria e a prática.
Segundo os cronistas, 17 meses depois morreu o Dr. Simão, "no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada".
É espantoso perceber como Machado de Assis, vivendo em um Rio de Janeiro de tão poucos recursos intelectuais, pu­desse pensar as questões da fronteira entre o normal e o pato­lógico, as relações entre loucura e religião, entre loucura e po­der, loucura e saber.
"O Alienista" é uma obra-prima de antipsiquiatria. Usan­do de um pessimismo irônico muito seu, o autor faz uma gran­de sátira ao saber médico, ao saber psiquiátrico.
"Demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura (...)"
A proposta do Dr. Simão Bacamarte não foi alcançada, mas ele denunciou os homens da Câmara e das tantas Casas Ver­des que, infelizmente, ainda existem nos nossos dias.
Além de possuir um valor inestimável enquanto texto lite­rário, "O Alienista" pode ser considerado como a primeira obra de antipsiquiatria brasileira.
Machado de Assis, assim como Simão Bacamarte, morreu só. Deixou-nos, entretanto, o legado dos seus escritos imortais.


Origens etimológicas

Alienado - Do lat. alius, "que pertence a outro, ou outrem, estra­nho", fez-se o verbo alienare, "fazer diferente, alterar, tornar estra­nho, afastar, etc.", e daí o port. alhear e a f. culta alienar, da lingua­gem jurídica, "transferir a outrem o senhorio, propriedade, posse, usu­fruto de algo, por venda, doação, etc." Como se empregasse, em lat., alienare mentem, "Sem sentido, fora da razão", veio o uso freqüente de alienado, com o sentido de "louco". (Guérios, 1979, p. 11)

Alienista - Médico especializado em doenças mentais

Delirar - V. Do lat. delirare, "sair do sulco marcado pela charrua; perder o caminho direito; perder a razão, delirar" (de lira, "sulco"); cf., em Port., os sentidos metafísicos de desencaminhar e de descar­rilar. (Machado, 1952, p. 747)

Orate, s. - Do esp. orate, este do cast. orat, "doido, louco", que, por sua vez, é derivado romance do lat. aura, "ar, vento, sopro maligno".

Bobo - do lat. balbu, gago; em português tonto, cretino. (Nascentes, 1932, p. 114)

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